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Danças Tradicionais da Lusitânia

 

Tal como a música popular, também as danças foclóricas de um povo são um bem marcado do traço da sua personalidade e também nelas se repercute um passado étnico e cultural que a esse povo conferiu a sua individualidade. O povo Lusitano exprime na sua dança a sua própria história e frequentemente evoca velhos rituais pagãos e arcaicas cerimónias cujas origens se perdem nos séculos mas que renascem poderosas na sua autenticidade.

Por danças populares Lusitanas (região das Beiras e norte do Douro) devemos entender, particularmente, as danças que o povo lusitano, hoje inserido no contexto de Portugal, bailou noutros tempos ou ainda hoje baila.

Não existe verdasdeiramente uma dança que se baile em toda a Lusitânia, de norte a sul; se o "Corridinho" e as "Saias" se baile no sul da Lusitânia,e em Portugal, já os "Viras", as "Chulas", as "Gotas" e os "Verde-gaios" só se bailam na Calécia.

Contudo, na sua variedade e diversidade, as danças populares lusitanas (e de uma maneira geral as portuguesas, mas estas últimas não estão aqui em causa) constituem um todo muito harmonioso pois que são, de uma maneira geral, alegres, bem ritmadas e ricas de voltas e posições, sendo uma das suas mais salientes características ofacto de elas serem sempre danças de conjunto, ao contrário do que se verifica entre inúmeros outros povos da Europa e do mundo, onde encontramos grande número de danças de solo, isto é, danças para um só intérprete; outro aspecto muito curioso e bem característico das danças populares lusitanas é o facto de elas serem quase sempre cantadas; queremos dizer que os pares que as bailam também geralmente cantam as melodias, pelo que raras são as danças do nosso povo que não tenham uma bonita e apropriada letra. E o contrário não seria muito compreensível pois que, e muito justamente, o povo lusitano goza da fama de ser um povo de poetas.

Infelizmente, é um facto que as festas e romarias do nosso povo vão rareando cada vez mais (os governos centrais nunca apoiaram a cultura tradicional das diversas regiões do país) e que o constante intercâmbio entre as populações do campo e as das cidades, o despovoamento das aldeias do interior, assim como as auto-estradas da comunicação, muito contribui para que as heranças culturais e os padrões de vida regionais vão perdendo dia a dia as suas características. No entanto, nem tudo desapareceu, e se as "modas" do modernismo e do consumismo invadem todos os dias osbailes populares, nem por isso o povo deixou por completo de dançar as suas próprias "modas" nas terras de origem.

É verdade que muitas das antigas danças populares lusitanas (incluindo as calaicas do norte, mas não incluímos as portuguesas e as cónias) deixaram de se bailar; mas em contrapartida, muitas daquelas danças que desde sempre o povo mais amou e melhor o definem ainda hoje têm oseu lugar de honra nas festas e romarias da nossa gente. Se já hoje no país se não bailam antigas danças para sempre perdidas como, por exemplo, a "Baila", o "Bailharote", a "Chacota", a "Fofa alta", o "Outavado", a "Chacoina", o "Cheganço", o "Filhote", a "Folia", a "Judiaria", a "Gitana", o "Lundum", a "Xotiça", a "Xácara", o "Vilão" ou as "Viloas", de que falavam os cronistas de outros tempos e antigos relatores da vida de outrora, nem por isso o "Terolero", o "Arrepia", o "Enleio" ou o "Machadinho" deixaram ainda, uma vez ou outra, de se bailar, nem os "Viras", as "Chulas", as "Saias", os "Corridinhos", os "Fandangos", os "Malhões", os "Balhos" ou o "Verde-gaio" foram inteiramente postos de parte ou esquecidos.

De uma maneira geral as danças populares lusitanas (tal como as outras portuguesas) podem dividir-se em cinco grandes grupos: a) as "danças antigas" (todas que o povo esqueceu), b) as "danças religiosas" (quase totalmente postas de parte), c) as "brincadeiras" (as únicas que ainda atraem alguns jovens), d) os "jogos bailados" (as mais adulteradas), e e) as "danças actuais" (que são aquelas que ainda estão em voga).


DANÇAS ANTIGAS

Entre as danças que o povo lusitano (e o português ) outrora bailou nas suas festas e romarias e cuja notícia nos é dada através dos relatos que delas nos fornecem os cronistas, os escritores e poetas de antanho, temos conhecimento, entre muitas outras, das já citadas, tais como: a "Bailia", o "Bailharote", a "Chacota", a "Fofa alta", o "Outavado", a "Chacoina", o "Cheganço", o "Filhote", a "Folia", a "Viloa", e principalmente a "Xotiça" (maneira lusitana de bailar uma dança celtica muito antiga). Hoje torna-se muito difícil saber como eram bailadas estas danças. Especialmente, a "Gitana" (ou dança dos ciganos), a "Judiaria" (ou dança dos judeus), o "Lundum" (que os negros nos trouxeram e tanto se popularizou depois no Brasil), a "Xácara" (dança dos negros do Brasil trazida para Portugal pelos marinheiros), entre outras.

DANÇAS RELIGIOSAS

Outrora no país, as procissões religiosas incorporavam nos seus cortejos uma parte profana e pagã (e portanto, muito combatida pela igreja católica romana em Portugal) que se caracterizava pela interpretação de danças álacres, quase bárbaras mas algumas típicas da Lusitânia e de outras regiões portuguesas, a que aludem velhos documentos e descrições e os ainda hoje existentes "regimentos" dessas procissões. Entre tais danças destacamos: a "Mourisca", o "Império", a "Judenga", a "Chacota", a "Charola", a "Chulata", a "Cativa" e as danças do "Cajadinho", das "Cantadeiras", dos "Cativos", das "Ciganas", das "Espadas", dos "Costumes", das "Donzelas", das "Destapas", dos "Encartos", dos "Espingardeiros", dos "Ferreiros", das "Fitas", das "Floristas", dos "Foliões da Arruda", de "Genébres", do "Jansé", do "Laço", da "Luta", da "Malta", dos "Mitrados", dos "Moiros", dos "Paulitos", dos "Paus, da "Pela", das "Pescadeiras", dos "Pretos", do "Rei David", da "Retorta", da "Roca", dos "Sátiros e Ninfas", dos "Tendeiros", do "Turco", do "Velho", e muitas outras mais perdidas para sempre.

Com o rodar dos tempos, a igreja católica proíbiu tais danças e folias nas procissões religiosas, pelo que foram completamente esquecidas apesar de uma ou outra ainda subsistir, sob forma adulterada ou carnavalesca, em algumas regiões de Portugal e da Lusitânia, mas hoje apenas bailadas como uso tradicional e sem qualquer função religiosa oficial.

Assim como estas danças desapareceram, também caíram em desuso alguns velhos instrumentos musicais típicos que as acompanhavam, como: a "achincalhadeira", o "arrabil", o "atabaque", a "buzina", o "cuco", a "genébres", o "macaco", o "reque-reque", a "zabumba", e a "ronca". Dos velhos instrumentos populares lusitanos (e também portugueses), hoje só subsistem: o "adufe", o "alaúde", o "pandeiro" e a "sanfona", mas as "gaitas de foles", as "harmónicas de boca", o "harmónio de fole", a "viola", a "guitarra", o "bandolim", o "bombo" e os "ferrinhos" gozam hoje da maior simpatia da parte do povo Lusitano.

BRINCADEIRAS E JOGOS BAILADOS

O povo Lusitano ainda se diverte com grande número de brincadeiras bailadas e jogos bailados. Umas e outras embora não constituam realmente danças verdadeiras são, pelo seu aspecto geral, tidas como danças muito populares. Exemplo de algumas, são: a "Carreirinha", a "Farrapeira", a "Farrapeirinha", o "Regadinho", os "Reinadios", os "Chicotes", etc., estes são alguns dos jogos e brincadeiras que ainda se bailam nos bailes populares. Neste tipo de danças, incluímos as danças laborais, que infelizmente estão a perder-se ou cada vez mais em desuso.

DANÇAS ACTUAIS

Entre as danças tradicionais e populares que ainda hoje se bailam na Lusitânia (e na Calécia) destacamos: o "Vira", o "Verde-gaio", as "Saias", as "Modas de bailhar", o "Fandango", o "Corridinho", a "Gota", o "Malhão", etc, etc. Mais adiante falaremos mais demoradamente acerca destas danças que bailam na Lusitânia e nas regiões portuguesas fronteiriças.

DANÇAS ESTRANGEIRAS

O povo Lusitano também importou danças, não só de outras regiões de Portugal como do estrangeiro. Muitas foram as danças estrangeiras que o nosso povo aceitou e adaptou à sua maneira pessoal, quase todas elas citadinas.

O facto, aliás, é compreensível: trata-se de danças que em geral os trabalhadores emigrantes ou soldados que viveram durante algum tempo nas cidades levaram para as suas aldeias e vilas, ensinado-as aí aos seus conterrâneos que imediatamente lhes davam um rítmo e um jeito especial. Entre tais danças contam-se: as "valsas", as "polcas", as "masurcas", as "quadrilhas" e as "contradanças", que há mais de um século o nosso povo vem dançando, e infelizmente trocando-as pelas tradicionais. Hoje, tais danças estrangeiras ganharam já umaspecto local, sendo, por isso, fácil distinguir uma "Valsa minhota" Lusitana de uma "valsa algarvia" Cónia, ou, uma "Mazurca duriense" Lusitana de uma "mazurca alentejana " portuguesa.

Quem percorrer as festas e romarias da Lusitânia (e das províncias históricas portuguesas) ou quem assistir aos bailes improvisados pela gente do povo no final das danças populares, nas festas finais da vindima ou da apanha da azeitona, ou mesmo no final da lota do pescado, nas zonas litorais, ou quem presenciar os bailes das festas de casamento e baptizado da gente do povo, os típicos "Balhos", as várias "Funções e "Funçanatas" usadas do norte ao sul do país... poderá observar ainda, ao lado de uma rica e individualíssima tradição musical popular, muitas danças que o povo executa numa pura expressão pessoal e bem característica.

DANÇAS MENOS CONHECIDAS

Existem muitas danças menos típicas e menos populares na Lusitânia e em Portugal. Ao lado daquelas danças que (como o "Vira", a "Chula", as "Saias", o "Corridinho", o "Malhão" ou o "Cana-verde") são mais populares e mais características na Lusitânia e em Portugal, outras danças baila o povo Lusitano que. apesar de menos características, nem por isso deixam de ser típicas e populares.

Entre as danças menos usadas e conhecidas pela gente do nosso povo Lusitano, destaquemos: a "Farrapeirinha" (da Beira litoral, zona de Ourém e de Caxarias), a "Farrapeira" (em toda a Lusitânia), o "Regadinho" (na Beira litoral e na Calécia), a "Ramaldeira" (na Beira litoral), a "Ribaldeira" (também na mesma zona litoral da Lusitânia), a "Tirana" (na Beira litoral e na região minhota da Calécia), o "Estalado", o "Lambão", o "Real-das-canas" e a "Viloa" (todas da Beira litoral), o "Tareio" (da região da Beira alta lusitana), e a "Vareira" (da região do Minho calaico).

Das danças menos conhecidas portuguesas (e não lusitanas) destacamos: o "Enleio", o "Chicote" e os "Reinadios" (a três da região Turdúla da Extremadura); a "moda-nova", a "Chotiça com marcador", e o "baila-ao-centro" (todas da região do Ribatejo); o "Marcadinho", o "Puladinho", o "Tope", a "Redondinha", os "Balhos-de-cadeia", os "Balhos-de-roda" e o "Chegadinho" (todas da região Turdúla do Baixo-Alentejo); o "Salto-em-bico" e os "Bailhos campaniços" (da região céltica do Alto-Alentejo).

Algumas danças ainda hoje executadas pelas gentes das regiões raianas Lusitana e portuguesa, como a "Gota ou "Jota" mirandesa (da Beira Baixa e das regiões transmontana e minhota da Calécia), ou as "Seguidinhas" (do Algarve, V.R. de S.A., e de Barrancos, Baixo-A.) são de raíz espanhola mas características só daquelas regiões; o "Fandango" igualmente de raíz espanhola, popularizou-se em toda a Lusitânia e em Portugal. Por outro lado, o "Balso pulado" (uma espécie de polca), e a "Chotiça", o "Balso marcado" ou "Balso rasteiro" (espécie de mazurca) quese dançam no Algarve são um aportuguesamento da valsa alemã que tanto se popularizou em Portugal, tal como a "Contradança" e a "Marcha"

RAÍZES DA DANÇA NA LUSITÂNIA

A história da dança de uma nação começa sempre antes de esta se definir como um Estado: para se apresentar uma imagem do que seriam as manifestações bailatórias no período pré-romano, tem de se ir buscar muito para trás os elementos indispensáveis para o entendimento desse passado próximo. Antes do mais, há a considerar que a Lusitânia (embora menos do que Portugal) saiu do heterogéneo panorama cultural Ibérico, noqual se combinaram as estruturas ibéricas originais, as cónias, as lígures, as indo-europeias (principalmente céltica e germânica), as semitas (fenícia, judia, árabe e berbere), as latino-romanas, as germano-bárbaras (godos e suevos), as franco-cristãs e mais modernamente as hispânicas, que em fusão magmática alteraram as terras e as gentes da Lusitânia (e de Portugal). Desta variedade nos dão conta a história arqueológica e, mais tarde, os primeiros fenómenos de história literária, "resumidos" nos cancioneiros que se apresentam como um "produto" da lenta evolução em que se caldearam aqueles elementos.

Na formação dos reinos peninsulares e mais tarde dos modernos países da Península, Portugal e Espanha, o agente aglutinador (e carrasco das danças e de toda a cultura pagã tradicional) foi a igreja católica romana, ainda hesitante no seu jogo de reminiscências judio-hebraicas e greco-romanas, e procurando sempre anular ou sublimar as forças pagãs naturais; mas, etal como desde bem cedo o revelam as constituições dos sínodos reunidos em Espanha, não foi fácil o triunfo da Igreja sobre as tradições pagãs enraizadas na vida dos povos ibéricos convertidos, os lusitanos incluído. Todos os estratagemas e ameaças foram usados para reduzir o aspecto concorrencial dessas tradições pagãs em relação às liturgias cristãs, mas o resultado final foi, de certo modo, uma assimilação moderada das forças mais impulsivas. Por exemplo, nosul de Espanha, região desde sempre mais personalizada em termos culturais, esta tolerância dura até aos nossos dias, com a prática reconhecida de um "cerimonial" divergente.

E, numa apreciação geral deste processo de cristianização (ou desersonalizaçlão), vamos verificar que as forças tradicionais, homogeneamente espalhadas pela Europa sob formas religiosas no fundo idênticas, vão ter reacções similares perante o avanço cristão (ortodoxo, católico ou protestante), no sentido de uma integração de ideias em princípio antagónicas. No caso ibérico, há ainda a considerar que a tolerância dos godos para com os hispano-romanos e depois, a sua conversão ao catolicismo, terá feito diminuir a ofensiva cristã contra os "males" pagãos e os "vícios" bárbaros do arianismo. Aliás, os godos, mesmo após a conversão, conservaram sempre uma posição de supremacia social que lhes permitiu manter usos ecostumes pagãos, sob a capa da conversão geral.

A região noroeste da Península manteve sempre uma arreigada independência de costumes em relação aos restantes povos da Ibéria, reagindo com especial denoto às sucessivas levas de conquistadores; à época da invasão árabe, por exemplo, aquela região pareceria indistintamente visigoda, mas sob ela viviam tradições suevas, celtas e sobretudo Lusitanas. Os cronistas romanos que se referem aos lusitanos, revelam com interesse oseu gosto pelas danças que se achavam intimamente ligadas à vida colectiva das comunidades nativas. Dizia Estrabão: "Mesmo bebendo os homens põem-se a dançar, ora formando coros ao som da flauta e da trombeta, ora saltando cada um por si a ver quem salta mais alto e mais graciosamente cai de joelhos. Os rituais fúnebres dos Lusitanos ficaram célebres eestão talvez na origem dos costumes carpideiros dos nossops irmãos portugueses. Chamavam-se NENIAS aos cantos acompanhados de dança em volta da pira em que se incinerava o morto, e a que os romanos deram o nome de "LAUDES". Silvio Itálico, outro romano, alude aos BARBARA CARMINA dos Lusitanos, os quais eram tão característicos para os romanos, que lhes chamavam "HIBERAE NAENAE", como se acha num prolóquio latino coligido por Erasmo. No Concílio III de Toledo, se disse: "Proíbimos completamente o cantar dos "carnes fúnebres" que o povo costuma entoar aos mortos". Possuímos mesmo uma evocação do funeral de Viriato, ocorrido em 132 a.c. e descrito no século II da Era cristã pelo escritor grego Appiano: "Ora pois tendo os Lusitanos vestido o corpo inerte de Viriato magnificamente, queimaram-no numa pira altíssima e sacrificaram-lhe muitas vítimas, correndo à roda, armados e em pelotões; dirigiam-lhe louvores à maneira Lusitana e até que a pira se extinguiu após vários dias, todos estiveram em volta dele. Acabada que foi a cerimónia fúnebre, celebraram-se combates corpo a corpo, até caírem às centenas sobre o sepulcro. Muitos foram os guerreiros que quizeram morrer com honra e acompanhar o seu chefe no Além. Tal foi a saudade que Viriato deixou de si".

Vindo ao encontro do gosto bárbaro dos Lusitanos pelos espectáculos violentos e pelas artes histriónicas, os romanos mandaram edificar teatros e circos na província ocupada da Lusitânia. Não se pode dizer porém que a inspitação romana tenha sido pura e simplesmente assimilada, antes devendo ter sofrido a influência das práticas do meio em que veio instalar-se. Desde a mais remota Idade Média, os eclesiásticos não cessam de usar os termos da antiguidade clássica: "MIMI", "BISTRIONES", e "THYMELICI", para indicar gente da sua época ligada à prática de espectáculos indecorosos e condenáveis, portanto, pagãos. As três palavras designam tipos procedentes do teatro romano, que logo passaram a exibir-se nas praças, nasruas ou nas casas, para divertirem um público mais reduzido, ou se estabeleceram nos palácios dos reis, como homensde divertimento.

O certo é que, confundindo ou fazendo coincidir as tradições próprias com as romanas, pagãs e cristãs, o povo Lusitano continuava a entregar-se mais ou menos veladamente ao culto das divindades da Natureza, celebrando-as ruidosamente com danças e cantares pouco cristãos e católicos, sobretudo no início das estações. De tal modo que, ao chegarmos à poesia dos CVancioneiros, vamos encontrar indeléveis reflexos das actividades bailatórias contemporâneas, ou das que em épocas anteriores mais vivamente se praticavam. Lembremos que as canções primitivas constituem uma tentativa de organização de um mundo primeira e imediatamente expresso através da dança, e que o processo se terá repetido na consolidação de outras formas folclóricas.

O "VIRA", UMA DANÇA PAGÃ

É ponto assente que o "Vira", dança popular Lusitana, nasceu no Minho (região da Calécia). Embora esta dança se encontre espalhada por todo o país, ela constitui a dança mais característica e representativa da região minhota, a ponto de se dizer que o Minho dança o "Vira".

No reportório do grupo folclórico das Lavradeiras de Santa Marta de Portuzelo, de Viana do Castelo, anda um tipo de vira muito singular, que é apresentado como o mais castiço de toda a região minhota, que tem por título de "Vira de Santa Marta". Apenas um único par, homem e mulher. Estes dois dançadores, de braços abertos, dançam frente a frente um para o outro, volteiam depois sempre ligeira e alternadamente desencontrados, para, finalmente, se colarem de flanco, cotovelo de um nas costas do outro, e assim juntos, se rodearem, dançando lentamente. A música instrumental, não é cantada, é o suporte de tal dança.

Dança singela, nitidamente erótica, não obstante um certo ar solene. Outros pares se juntam àquele, a formar um conjunto, de efeito espectacular, mas todos exibindo, isolados e independentes, a mesma coreografia eatitudes do par modelo. Se esta dança autêntica, e como tal cremos, deve ter sido recebida pelo grupo que a exibirá com a maior probodade; se o fornecedor tinha capacidade e não a ousadia de inculcar uma dança que não passava, afinal, de um arranjo e, portanto, de uma fantasia ou artifício, tão frequentes - e por isso de temer! - nos tempos de epidemia folclórica que estão correndo, estará aí a chave e a explicação do carácter particular das danças do Minho (portanto, da Lustânia caláica) de aspecto vertical que temos estado a encarar. É que estaremos, segundo o nosso modo de ver, em presença de uma dança ritual autenticamente pagã ou cerimonial de Fecundidade.

Esta dança de um só par, musicada mas não cantada, como dissemos, e que por isso não se ajusta ao tipo das de divertimento ou de baile, sempre constituídas, como ficou dito, por um conjunto de pares com cantador ou cantadora, deve ter vindo dos confins da magia com sentido propiciatório ou congratulatório: a mulher ou o casal que queriam ter filhos ou que tiveram a graça de os ter por um dom divino, sagrado ou mágico.

A DANÇA CASTA

Não nos parece de modo algum, aceitável que certos agrupamentos pretendam revelar características etnográficas, esquecendo-se das condições impostas pelo local onde se encontram, e desvirtuem com indumentária imprópria, letras sem qualidade e arranjos musicais, trajos, danças e cantares genuínos.

Daí, a nota revisteira que resulta da presunção do ensaiador de momento, homem de cultura rudimentar, mas indiferente ao sagrado princípio da soberania do Povo, que deve presidir a qualquer manifestação folclórica.

Quanta beleza, nesse estrangulamento, desaparece! Por um lado, poda-se o que é bom e, em contrapartida, deixa-se crescer muita erva daninha, pois o cuidado do director artístico actualmente resume-se a tornar legível, no reportório apresentado, o seu insignificante nome... Daí a pergunta que formulamos, ao ouvir músicas mais velhas do que nós, escandalosamente deturpadas: - Por que não cantam como dantes?

Porém, as coisas são o que são. E o desconcerto actual resulta de, raras vezes, se conceder a César o que únicamente a ele pertence... Resumindo: nenhuma cancela, nenhuma grade, nenhum freio o resguarda do precipício!

E à liberdade do ensaiador corresponde outra, nunca menos niciva, ocapricho que, no meio do adro ou da feira, chegava a ter pitoresco, mas que, transportado para o palco improvisado, quebra a harmonia do conjunto e atraiçoa a tradição milinar de que os ranchos devem mostrar-se herdeiros e detentores.

Assim porexemplo, uma saia de lavradeira, exageradamente curta, pode passar despercebida na eira e, já no palanque, mirada de baixo para cima, assinala a ofensa ao pudor de que fez prova, sempre, a mulher da serra, do campo ou da beira-mar em Portugal e nas nossas regiões.

E se pouca responsabilidade cabia à romeira, o mesmo nãsosucede com a que se tornou actriz no momento em que teve de mudar de roupa a fim de entrar em campo. Ora, uma coisa, por certo, será surpreedê-la em plena romaria e outra, assistir à exibição onde não basta que um valor sobressaia para que os restantes mereçam aprovação.

Deploravelmente, chega a haver aldeias, um pouco por todas as regiões do país, onde a barra da saia é maior do que a saia propriamente dita, o que imprime ao grupo folclórico aspecto de rancho infantil avantajado. Isto enquanto à mais leve das voltas do "Vira" logo se nos deparam calças com folhos, quando não meias, presas por atilhos, amarrado abaixo do joelho, sendo, contudo, sabido que a lavradeira que se preza de o ser usa em vez de calças pelo menos uma saia de baixo, estreita, de modo a não provocar, dançando, os aplausos do espectador alvar.

DANÇAS PROCESSIONAIS

Na coreografia popular Lusitana (e também na portuguesa) há ainda numerosos vestígios de antigas danças e bailados, pantominas ou mímicas, de formação histórica. Em certos exemplos, a primeira observação indica-nos logo procedências e afinidades. Em outros, como acontece tipicamente nas tradições populares, as formas ancestrais cruzaram-se, penetraram-se reciprocamente, influíram com maior ou menor profundidade umas nas outras, sem que todavia deixassem de mostrar o carácter de origem e de parentesco. Formam tipo.

A maior parte destas danças e bailados, porserem festivas e de regozijo, aplicaram-se às comemorações religiosas locais, e realizaram-se ou realizam-se ainda, particularmente nos dias de comemoração dominante. Assim vieram a constituir danças religiosas.

Muito contribuíram, sem dúvida, para semelhante resultado as procissões do "Corpo de Deus", cujos festejos, foram determinados por provisões régias, que lhes atribuíram acategoria de maior importância, a ponto de outras, estabelecidas com permanência ou apenas organizadas em oportunidade de monta, obedecerem às regras daquelas.

A LUSITANA "DANÇA DA TRANCA"

Há na Beira Baixa (portanto, no coração da Lusitânia), pelo menos nos concelhos do Fundão (Silvares) e da Covilhã, uma dança típica muito curiosa - a "Dança da Tranca". O nome desta dança advém da presença de uma tranca posta no chão sobre a qual dois dançadores, no momento homem e mulher, executam uma coreografia no género do conhecido "Fandango do Ribatejo".

Na "Dança da Tranca" cada um dos dançadores, ao aproximar-se desta e emfrente das suas extremidades, faz uns ligeiros movimentos de bailado, à maneira de uma reverência cerimonial de iniciação, para logo se aproximar e em seguida executar uma coreografia em cima e de cada lado da dita tranca sem, porém, como é de preceito, lhe tocar, o que o outro parceiro repete, e sendo mulher segurará a saia exterior por altura dos joelhos para a sacudir rápidamente ao ritmo de música viva que serve de suporte à dança, não cantada. A dança termina com o abandono simultâneo dos dançadores, que se juntam para saírem a bailar.

É uma coreografia simples, limitada ao movimento, de rítmo apressado, dos pés enquanto o corpo se conserva erecto. Embora a presença da mulher possa indicar que se trata de uma dança de galantaria, o divertimento não está ali patente nem se vislumbra.

O elemento feminino não passará, a nosso ver, de um acrescento recente para dar mais carácter à dança ou enriquecê-la. Temos que esta dança seria dançada primitivamente por um só homem e, depois, por dois, em função ritual, para, perdido o seu simbolismo, se conservar numa dança espectacular de competição, como é hoje considerado o "Fandango do Ribatejo", em que a mulher será, no ânimo dos dançadores, o alvo de conquista através das habilidades de cada um com os trejeitos dos pés.

Mas para quê a presença ali da tranca? - Que função ou papel é o seu? O problema é, segundo o nosso modo de ver, de fácil decifração: - a tranca nada mais é, nada mais representa do que um substituto de uma espada, objecto de culto, que subsiste.

Estaremos assim, em presença de uma velha dança ritual pagã de agilidade ou de destreza de um ou dois guerreiros, no culto da sua arma de combate em véspera ou em resultado benéfico deste!

Danças deste tipo encontram-se ainda em alguns países, principalmente na Escócia e na Turquia, e se deve ter sido trazida, como tantas outras, para a Península pelos Celtas ou Licianos (ou de forma indirecta, pelos romanos). Com o andar dos tempos essa dança, que se vem transmitindo de geração em geração, viu a espada primitiva ser substituída, primeiro, por uma vara, depois, por uma tranca caseira, sempre pronta atrás de uma porta da casa próxima. A primitiva espada devia estar espetada no chão e ao alto e quando passou a vara a substituí-la esta tomaria a posição que hoje pertence à tranca e, no primeiro caso, seria um só dançador a prestar-lhe culto.

Outra questão se põe em equação: - Não será a dança da "Tranca" a origem do "Fandango Ribatejano", dado o paralelismo das duas coreografias? - O contrário é que é impossível. A posição dos dançadores do "Fandango", dois homens que se afrontam inicialmente, como que a medir-se, depois se aproximam e dança, a mesma coreografia da dança da "Tranca", com movimentos dos pés semelhantes, iguais atitudes e aprumo dos dançadores, não nos impõem a convicção que, se o "Fandango" não é filho da "Dança da Tranca", como cremos, derivou do mesmo tronco comum?

O que essas danças, a da "Tranca" e o "Fandango" não são, positivamente, é lúdricas pu de divertimento como as de raíz nacional, que exigem sempre um conjunto de pares - homens e mulheres - em economia comunitária. Uma e outra, com efeito, excluem a possibilidade de baile, o baile campestre da nossa gente rural!

AS DANÇAS MIRANDESAS

Nas inúmeras danças de Miranda do Douro, destacamos o "Pingacho", "Pengacho" ou ainda "Pindacho". O "Pingacho" é um estranho bailado mirandês. Como o "Galandum", é um bailado paralelo ou de coluna, misto, isto é, dançado por homens e mulheres, dispostos em duas filas paralelas, eles numa fila, elas na outra.

Vimo-lo dançar, a um grupo de rapazes e raparigas da freguesia raiana de Paradela, aquando das comemorações centenárias da elevação de Miranda do Douro à categoria de cidade. O cortejo folclórico teve o condão de nos revelar muitas coisas ignoradas do folclore da Terra de Miranda, de que o "Pingacho" é uma das suas mais interessantes manifestações.

Dançavam-no oito rapazes e oito raparigas, em trajes claros, antigos, do Vale de Miranda, queimados e crus como a charneca da região raiana de Paradela e das terras leonesas confinantes do outro lado da fronteira.

A dança era acompanhada de coro ao som de um singular instrumento de corda, que tinha por caixa de ressonância a parte fundeira duma lata de petróleo, em forma de cubo e com tampa furada do outro lado das cordas. Tocava este original instrumento um homem. Quem visse de chofre aqueles oito pares a dançar frente a frente, e logo, aos encontrões, primeiro de flanco ou de lado, depois pela frente e por último pala retaguarda, encostando-se pelos flancos, simulando encostar os umbigos e batendo com toda a força os fundos das costas em pleno realismo, sentir-se-ia, se não ruborizado de pejo, pelo menos fortemente impressionado. As vozes duras, como os trajes rusticos e os gestos, contribuíram para dar ao conjunto um especial vigor.

O "Pingacho" sempre se dançou em Paradela, é tão antigo quanto as suas gentes, mas também se dançava em Ifanes, Póvoa e Constantim, freguesias do Concelho pertencentes à zona raiana. Hoje, infelizmente, circunscrito a Paradela, está quase a desaparecer. As pessoas que mais dançam este bailado são os idosos. As moças de hoje, sob a influência da vida moderna, já se envergonham de dançar os bailados de suas mães e avós: pelam-se pela música estrangeira anglo-saxónica de disco e do alto-falante, música de ritmos importados, repressivos e urbanosde que elas não sabem compreender nem dançar, mas que pincham e rodopiam porque são da moda e da destruição cultural nativa, dizemos nós.

Este bailado é, como já dissemos, do tipo paralelo dos bailados mirandeses ou de coluna, como o "Galandum", a "Bicha", o "Redondo", as "Ligas Berdes, Abas Berdes" ou "Augas Berdes", o "Maganão", a "Saia da Carolina", etc. Os ritmos destes bailados são nitidamente desta região raiana leoneso-mirandesa de raíz Lusitana, e todos parentes uns dos outros, na música, na coreografia, na mímica e alguns deles até na letra. Não nos parece que haja neles qualquer influência estrangeira ou extra-peninsular.

Na Terra de Miranda há bailados circulares, tipo fandango,como a "Geriboila", e os bailados passados, tipo muinheira galega, numa infinidade de ritmos. Há também os bailados de par, como o puro e límpido "Mira-me Miguel", de carácter pastoril, e o "Flaire", e ainda a característica e única "Dança-do-Berço" e o pantomínico e inédito "Scarabanilho", bailado aos pares com o corpo dobrado para a frente e as mãos presas uma à outra por baixo das coxas. Por último, queremos destacar uma dança única na Europa, conhecida internacionalmente, antiquíssima e guerreira, a dança dos "Pauliteiros de Miranda", esta dança guerreira vinda directamente da noite dos tempos e dos primeiros povos ibéricos que povoaram a Lusitânia (especialmente a actual zona mirandesa), e sobrevivente de inúmeras ocupações e invasões, é dançada só por homens, cada um com dois paus (simbolizando as espadas de antão) a combaterem alegremente num bailado belo e rude, tal como se fazia nos jogos marciais na época de Viriato ou antes da ocupação romana!

Embora esta e outras danças se possam bailar em qualquer ocasião, têm no entanto, dias assinalados no ano, que lhe são, pode dizer-se, especialmente consagrados. Assim sucede, por exemplo, com o "Redondo" em Ifanes, e a "Bicha" e o "Fandango mirandês" na freguesia de Duas Igrejas. Quase todas as povoações do Vale de Miranda têm a sua festa de Inverno dedicada a um santo, na qual há divertimentos tradicionais com comes-e-bebes e danças próprias. Isto vem confirmar as remeniscências, vagas ou claras, das antigas celebrações pagãs, muitas de cunho fálico, ligadas às rituais gentílçicas do solstício, como eram as saturnais, as dionisíacas, as lupercais, as amburbais, etc, ou mais recentemente, as janeiras. No fundo, estas danças transmontanas ou lusitanas, próprias de alguns dias festivos, representam não a rudeza selvática desta gente, mas sim, o documento vivo de uma civilização a extinguir-se...