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A Música Tradicional Lusitana

 

Não será neste local, não só pela falta de espaço como também pelas discordâncias existentes entre os especialistas da matéria, que iremos indagar da essência ou carácter próprio de um património musical de que ainda hoje pouco se conhece a vera feição estética e a exacta dimensão sociológica e cultural da Música Lusitana.

Assim a nossa intervenção limitar-se-á a sublinhar alguns aspectos mais salientes do canto e, com eles, os mais pronunciados particularismos regionais de cada uma das três áreas da Lusitânia (Beiras, Minho e Trás-.os-Montes), atendendo, sobretudo, ao facto de terem sido eles em geral recolhidos e avaliados de acordo com critérios de flagrantre subjectividade. Nestas circunstâncias, infelizmente, o canto perdeu singularmente, na tradução escrita que dele é dada, a força telúrica e osignificado de facto social dinâmico dos velhos tempos.

Neste particular, conviria apurar o verdadeiro âmbito e peso relativo de factores que refiram, por exemplo, a situação geográfica peculiar das diferentes regiões ou áreas Lusitanas dentro do contexto de Portugal (receptáculo de correntes culturais justapostas vindas do Este e Sul); a nossa miscigenação de raíz Ibérica, Fenícia e Céltica com Árabes, Judeus, Romanos e Germanos; as invasões de povos culturalmente avançados; os Descobrimentos portugueses e a emigração maciça das gentes Lusitanas como principal factor de descaracterização sócio-cultural do povo Lusitano e os seus reflexos no plano psicossocial; a fixação de numerosos escravos africanos; as relações seculares com vizinhos precedentes de várias etnias, reunidas sob o contexto Ibérico; a sedentarização de tribos ciganas; enfim, os novos desafios e ameaças trazidas pela moda e o consumismo da globalização, a uniformalização e a massificação da cultura, tudo isto e muito mais, são factores que influenciam a música e a cultura de um povo.

Mas faltaria ainda descortinar numa comunidade tão velha como a Lusitana, dentro do contexto de tão velha nacionalidade, como o é a Portuguesa, e apesar do papel centralizador do Estado e unificador da Igreja Cristã, as razões de tão marcadas diferenciações regionais não só dentro de Portugal, mas também dentro da própria Lusitânia e, outrossim, determinar o porquê da tão probante funcionalidade da canção popular Lusitana (Beiras, Minho e Trás-os-Montes) em Portugal, o que sem dúvida remeteria para questões lindantes com estruturas fundiárias e sistemas de produção. A todas estas questões, praticamente sem resposta unanemente aceite, contrapõe-se a firme presença docanto ou da balada, cuja função sempre se ajusta às leis da sobrevivência na sociedade tradicional e de economia rural, em ritos do trabalho e de religião visam assegurar ao homem a sua salvação no mundo terrestre, assim como manter a unidade dentro de cada comunidade rural. Se quiséssemos agora considerar oque de mais significativo revela a nossa canção popular ou tradicional Lusitana, do ponto de vista da sua natureza, modalidades, estruturas e funções, não hesitaríamos em apontar para quatro aspectos díspares mas inequívocos e cuja apreciação conjunta permite detectar a profunda integração do fenómeno musical na vida quotidiana das populações rurais do interior.

A expressão polifónica parece-nos ser a que mais pertinentemente afirma o comportamento musical do povo Lusitano (e de uma maneira geral do português), atestando nas suas formulações um longínquo enraizamento e uma dispersa implantação territorial. Ao abranger grande parte da actual Beira Litoral e Interior, Minho, além de zonas limitadas de Trás-os-Montes e das regiões históricas portuguesas do Ribatejo e Alto-Alentejo, o canto polifónico assumiu entre nós uma importância raramente igualala em outros povos da Europa, repare-se de passagem, a sua quase inexistência na vizinha Espanha.

Sumariamente, esta polifonia apresenta as formas antigas do gymel (canto em terceiras) e do fabordão (canto em terceiras e sextas) e deste, formas mais elaboradas a três e quatro vozes (organum). É de sublinhar o facto de ela ser entoada apenas por mulheres em quase todas as regiões. Assinalam-se contudo, exemplos de excepção, que são certos cantos rituais da Beira Baixa e da Litoral e certas modas citadinas adulteradas. Por fim, o que mais surpreende nesta polifonia é o seu ajustamento às ocasiões do trabalho (sacha, sementeira, ceifa, varejo da azeitona, arrancada, maçadela e espadelada do linho) a testemunhar a sua solidariedade com as tarefas vitais do homem do campo.

A música que costuma designar-se genericamente por música religiosa ocupa um espaço inegável na nossa tradição, pela variedade e riqueza das suas expressões. Oferece-nos ela derradeiros vestígios de estilos e modos arcaicos, ao acompanhar certas cerimónias que a liturgia católica fixara e, sobretudo, ao inserir-se em práticas exteriores ao culto. Assim, ao lado de músicas litúrgicas folclorizadas, outras há que exerciam, ou ainda exercem, funções rituais libertas dos cânones ou imposições eclesiásticas. Disso são exemplo os cantos de romeiros baseados em incisivas fórmulas melódicas (Beira Baixa) ou estruturadas polifonias (Minho, Beiras) e os cantos de peditórios das Janeiras e dos Reis (em toda a nação Lusitana e em todo o Portugal também). Essencialmente vocal, esta música, inclui, todavia, elementos instrumentais cuja função mágico-encantatória se acha patente no reportório, porexemplo, dos gaiteiros Transmontanos da Lusitânia. Observe-se ainda que raramente ela se exprime de maneira devota ou exageradamente mística. Pelo contrário, transparece aí uma curiosa liberdade na convivência com santos protectores e outras divindades de raíz ou origem pagã a quem são dirigidas rogações a visar fins utilitários imediatos.

Outro aspecto, reside na curiosa omnipresença do romanceiro, assumindo funções diversificadas a reflectir a sua nítida implicação na vida colectiva e doméstica das populações rurais. A sua difusão é ainda praticamente notável em áreas extremas do actual território Lusitano, ou seja, em Trás-os-Montes (e também na região portuguesa do Algarve, note-se). Achamo-lo ligado naquela região às fainas agrícolas, em especial à ceifa, sob a forma de canto alternado (cuja melodia se desenvolve em geral no âmbito de um primitivo pentacordo). Neste caso, conserva-se o carácter melódico dos velhos romances cantados em «tom morto», que ainda podem ouvir-se da boca de gente idosa em todas as zonas da Lusitânia. A sua interferência em ritos do trabalho (as já mencionadas cantigas das Segadas e, também, das Malhas, da apanha das ervas, da fiação e tecelagem do linho, etc), em datas consagradas no calendário cristão (Janeiras, Reis, Quaresma) ou ainda, em horas devocionais do dia eda noite, assegura-lhe um lugar de predilecção na memória (e no gosto) popular. Tanto assim é que sobrevive nas narrações circunstanciais de cegos andantes e poetas vagabundos a testemunharem as suas sempre renovadas florações.

O último aspecto, a assinalar, e a que nem sempre se deu a merecida atenção, diz respeito às tonalidades em que se estruturam bastantes espécimes do repertório tradicional Lusitano. Assim, ao lado de um grupo maioritário decanções tonais (baseadas no clássicomaior-menor), devemos distinguir três outros grupos formados por canções modais (onde dominariam o mixolídio, o frígio e o eólio), canções cromáticas, que assimila a modos, aplicando-lhes a qualificação de "exóticos", e canções, ou mais propriamente melopeias, partindo de um "simples núcleo tetracordal ou pentacordal" (romances das Segadas e certos cantos de romeiros, respectivamente, em Trás-os-Montes e na Beira Baixa da Lusitânia).

As nossas breves observações não esgotam a inextricável complexidade do fenómeno musical popular da Lusitânia, de que se não podem ignorar aspectos considerados de menor interesse musicológico, mas não de todo desprezíveis, pois que em boa verdade não são menos elementos desse fenómeno. Citamos por exemplo, os chamamentos e diálogos entoados à distância, as cantinelas da pedra, os ritmos dos cavadores no plantio do bacelo e o leva-leva dos pescadores da sardinha (esta última existe só na região portuguesa do Algarve, pois perdeu-se na Beira Litoral), que remetem para velhas culturas pastoris ou nos revelam os primórdios do canto.

Mas muitas outras questões levantaria uma abordagem que se desejaria menos superficial, induzindo-nos entre outras, a observações discutíveis quanto à estruturação estrófica da canção popular Lusitana dentro do contexto português (como, a predominância da quadra como suporte da melodia e sua extrema mobilidade) ou interrogações acerca da diminuta incidência da nossa música instrumental, do carácter um tanto estereotipado da coreografia popular, ou ainda, da permanência aqui e acolá, do canto liberto da metrificação regular, etc.

Dito isto, resta-nos apenas considerar a situação presente da música popular e tradicional Lusitana (das suas áreas beirã, minhota e transmontana), inserida como ela se acha numa sociedade rural percorrida por correntes antagónicas. Na ocorrência, apenas nos é lícito observar sucintamente:

1. A tradição oferece resistência frontal às músicas exógeneas, mas apenas na medida em que ainda corresponde a necessidades sentidas colectivamente.

2. Da perda irremediável de espécimes, estética e socialmente preciosos, que teria sido possível conservar para a posterioridade e as gerações futuras do nosso povo, não se pode inferir a fatal extinção a muito breve trecho do folclore musical Lusitano e do Português.

3. Enquanto subsistir a subalternização social e cultural de vastas camadas da nossa população nativa, ou seja, enquanto não surgirem condições para o nascer harmonioso de uma cultura nacional Lusitana identificada com o devir colectivo da nossa comunidade, o folclore (música, danças, artesanato, gastronomia) continuará a constituir o refúgio da criatividade popular, a imensa floresta onde se ocultam velhos segredos e se forjam novas esperanças.